11 junho 2014

O começo do fim.


Faleci. Aos poucos, fui conhecendo a morte. Mas não o céu. Este ainda parecia estar longe de mim. Não porque não fosse merecedora dele, nada disso. Tive vida de santa e nome de santa. Mas porque a minha - se é que posso chamar assim - "vida" parece estar de cabeça para baixo. Parei de andar, mal enxergo, mal ouço, mal falo. Balbucio uma ou outra palavra. Quem escuta, dá um sorriso. Parece que estou aprendendo a não falar. Aprendendo a morrer. Aos poucos. Sou incompreendida. No sentido literal e metafórico. Soa até engraçado pensar isso, porque... A única surpresa seria se eu fosse compreendida. Quem é que irá compreender uma velha, tida por muitos como gagá, caquética, se ela mal fala, mal escuta e não anda?!
Seria uma boa surpresa, até porque... Já tive uma vida. Já fui amada, já amei, já estudei, já li - bastante -, já conversei, já ouvi, já fui ouvida, já vivi. Não é porque esteja numa cama de hospital que não tive tudo isso. Tive e deveria ter, se minha família compreendesse. Ela pensa que não me recordo. Mas recordo-me de tudo, de há um tempo atrás. Só não muito o que falam agora. Mas também... Soa-me desinteressante. Jogo tudo na lixeira. Eles só enxergam uma velha de 99 anos. Mas há muito mais que isso. 99 anos de amores, de experiência, de sabedoria. Fui professora, não contei?! De Português e de História. Mas só lecionava História nas horas vagas. O que eu gostava mesmo era de escrever... Escrevia de tudo. Sonhava em ser escritora, mas acabei virando professora de Português. Não que isso fosse ruim... Não, nada disso. Até porque adorava ver aqueles olhinhos brilhando dos meus pequenos alunos, ao alfabetizá-los. Conheci tanta gente. De Caetano à Safira. Hoje, devem estar velhos, como eu. Não imagino que vida levam. Se têm vida, se já morreram ou se têm vida e estão mortos, esquizofrenicamente como eu.
Não sou esquizofrênica. Não me entenda mal, inconsciente, subconsciente e consciente. Mas gosto de pensar comigo mesma, até porque... Já dei meus motivos. E sou redundante, contraditoriamente contraditória. É o único lazer que tenho: concordar e discordar de mim, através do tic, tac do relógio que ouço. Esse, sim, consigo ouvir perfeitamente. O tempo passou. Achei que seria uma menina para sempre. Até fui... Sou. Ainda me acho menina. Não, não tenho mais aquela pele de antes, a memória, a aparência. Mas tenho aquele espírito juvenil e arrebatador, por mais que só enxerguem uma velha, caindo aos pedaços. Passo disso. Sou muito mais. Não estou preocupada com o que pensam. Aliás, eles só vêm aqui para tentar adivinhar o que eu penso. Soa cômico mas, no fundo, é trágico. Ninguém quer ser tratada como uma velha gagá, por mais que seja uma velha gagá.
- Mamãe, a senhora está bem? - disse um de meus filhos. Tenho 6. Dois já morreram. Um se foi com aquela doença maldita, que não consigo nem pensar no nome. Outro se foi de desgosto.
- Claro que está! Olha a carinha dela. Está até sorrindo. - disse a esposa de meu filho, para tentar me agradar. O mais gozado é que estava séria, com o olhar fixo na televisão. Estava dando jogo do Brasil. Consegui saber que era do Brasil, por enxergar as cores gritantes do uniforme. Talvez seja do Brasil. Não conheço nenhum outro time que use verde e amarelo.
- É bom baixar, Maria de Lourdes! A vovó quer dormir. - disse João Marcelo, meu filho mais novo, com a sua filha mais nova. Eu não queria dormir.
- Claro que não, João! Ela está feliz em nos ver. Quer ficar acordada - disse Maria Antônia, minha filha.
- Mariazinha, você sabe que a mamãe mal nos enxerga... Talvez ela esteja dormindo, de olho aberto.
- Ela não é um peixe, papai! - disse Maria de Lourdes.
Todos riram. Menos eu. Estava permanentemente séria. Mas era assim que eu me sentia, mesmo: um bicho enjaulado, sendo visitado, como num Zoológico, em que jogam alimentos - só que pela veia - e dão sorrisinhos patéticos, enquanto tiram fotos não autorizadas. Como se pede autorização para um bicho? Pois é. E essa visitinha fora de hora, em que meus filhos e netos vieram, em conjunto? Isso tudo é para que? Será que eles não podem me deixar um dia sem visitas? Ou têm medo que eu morra, sem dar o último adeus? Eu já morri. E não teve adeus. Acho isso maior falsidade. Não me deram nenhum valor enquanto estava vivinha da Silva. Agora que estou entrevada, numa cama, querem adivinhar meus sentimentos... Bando de...
- Ingratos! Vocês são uns ingratos! - disse Maria Antônia.
- Mas por que esse escândalo agora, Antônia? Está de brincadeira com a gente, né? Respeita a mamãe um pouco. - disse João Marcelo.
- Sei bem porque vocês vivem aqui, de visitinha. Tem a herança. Vocês só pensam nessa parte. Na parte imunda, suja.
- Tem razão, Maria, tem razão. Eles só pensam nisso. - disse Felipe, meu neto mais velho - Tenho vergonha dessa família.
- Dá para parar com isso? Vocês todos? Respeitem a mãe, vó de vocês - disse a esposa de João Marcelo.
- E, só para a sua informação, Maria Antônia, se somos ingratos, você também é. Ficou a maior parte do tempo viajando no exterior, usufruindo de bons restaurantes, bons hoteis, bons passeios, enquanto a porcaria da nossa mãe estava mais precisando.
Estava gostando de ver o circo pegar fogo, apesar de ser minha própria família brigando por minha própria causa. Até a palavra "porcaria." De bicho fui promovida à objeto inútil. Pelo menos, bicho tinha vida. Objeto inútil nem isso tem. Uma porcaria de lágrima foi escorrer dos meus malditos, cheios de catarata, olhos, enquanto todos olhavam espantados para mim. Maria Antônia foi a primeira a me pedir desculpas, por todos. Os outros olhavam espantados. Não havia expressão em meu rosto. Só uma maldita lágrima, que insistia em escorrer. Fechei o olhos. Não voluntariamente. Mas para sempre.

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