Há
um menino aqui dentro. Eu o conheço. E, apesar de estar escuro, sei que só há ele
nesse lugar. O sinto facilmente. Essa aura doce e pesada. Esse lábio desenhado que
contorna seus medos. Esse coração que tem vontade de voar. Voar e viver livre, longe da prisão que é o
corpo.
Ele
ainda não me deixou entrar, mas consigo ver facilmente o escuro daquele lugar.
O escuro confortável e macio. Seguro e singular.
Sei
que sente medo de abrir a porta para qualquer um, mas um dia desses ele me
deixou entrar. Naquele momento senti que
ele estava depositando confiança em mim. Por
que eu? Acho que sei como explicar isso.
Tudo
começou quando dei a partida no carro e deixamos a cidade menos tediosa. O
álcool não corria no meu sangue, mas me sentia bêbado – o que aqui quer dizer,
contaminado por um sentimento que me tirou de mim.
Naquela
noite, a liberdade pulsava cada instante. As estrelas e luas prateadas corriam
acima de nós, mas também eram refletidas em cada tato, beijo, pele. Eu não
estava preso à ele, nem ele a mim. Éramos almas leves prontas para voo.
Os
artificiais tons de roxo e azul refletiam na sua alegria marcada por um
constante sorriso. Nem parecia aquele menino retornando ao quarto. Nem parecia
com o menino que cumpria o dever, sorria, sofria e sofria.
De
volta ao escuro, ele tentou levantar. Tateava os objetos do quarto, mas logo
tropeçava em um que não conseguia ver. Levanta novamente. Cai. Levanta. Por
fim, mesmo que com alguns arranhões, ele grava onde está cada tropeço e não
tropeça mais, assim tão facilmente.
Estou
na porta, estendo a mão. Quando sinto o toque delas, as puxo. Vivemos mais umas
horas. É como se estivéssemos voltando para casa. A casa que não nos deixam
morar, mas é como se fosse nosso lar. O vento nos faz cócegas e abre nossos
sorrisos. Conseguimos sentir o ar invadir os pulmões e sair com mais
facilidade.
Então ele diz que já é hora de voltar. Estremeço e lembro que não estou preso à ele,
nem ele a mim. Me olha enquanto espera uma despedida. Fito um sorriso que traduz
aquilo que eu compreendo dele. O compreendo porque ele sempre me faz lembrar
que o lugar mais seguro para se estar é dentro de si mesmo.